CHARCO
dos encontros com Galeano
colaboração de Gabriel Coelho (Rio Grande, Brasil)
Quando pensamos em intelectuais, pensadores e escritores que contribuíram à integração latino-americana e à formação de esquerda de duas ou mais gerações de “subversivos”, como não trazer ao palco dos pensamentos, Eduardo Galeano?
O velho Uruguaio, que sempre ilustrou as utopias daqueles que buscam, constantemente, um mundo melhor e mais justo, uma América Latina descolonizada e livre das diretrizes imperialistas,
![](https://static.wixstatic.com/media/4b7259_617a8d757c6a416bab2deb905ed63e34.jpg/v1/fill/w_359,h_269,al_c,q_80,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/4b7259_617a8d757c6a416bab2deb905ed63e34.jpg)
partiu para outro plano, deixando seu legado e descortinando, através da obra “As veias abertas da América Latina”, toda opressão de um povo por conta dos interesses do capital internacional.
O pensamento social de Galeano parece não ser bem visto pelo conservadorismo acadêmico brasileiro. Talvez por motivos óbvios. Galeano não tem o perfil do intelectual brasileiro que resguarda seu deleite no número de publicações em seu currículo. Galeano tinha outra missão: abrir nossos olhos para a desigualdade social que agonia a América Latina. Sua linguagem era poética. Não era massacrante, dura, cheia de erudição, desconectada da nossa realidade, com fonte Arial 12 e citação recuada 4 cm à esquerda – muito embora suas reflexões estivessem à esquerda (para não perdermos o trocadilho infame). Esse é o motivo que fez com que Galeano fosse relegado à periferia das Universidades brasileiras. Esta última que, por sua vez, prioriza muito mais os títulos (a própria mercantilização da pesquisa, calcada na produção fordista em série) do que uma obra-prima digna de leitura obrigatória e respeito, como as obras de Galeano.
O Brasil parece estar um tanto quanto isolado da realidade do povo latino-americano. A verdadeira história da colonização europeia, em solo latino, sempre nos foi obscura. Mas com as palavras de Galeano, em meados da década de 1970, foi possível romper com essa fronteira entre o “nós brasileiros” e o “eles latinos”. Galeano marcou-nos a identidade latina de forma singular. Suas palavras tinham o objetivo de unificar a história do povo da América Latina, abrindo espaço para que pudéssemos conhecer outras alternativas de leituras que focassem na crítica ao processo de internacionalização do capital em nossas terras e à desarticulação política e social – principalmente por meio de golpes militares, financiados pelo governo norte-americano nas décadas de 60 e 70, do século XX – do nosso continente. Talvez seja por isto que não é bem-vindo em alguns meios, sobretudo nos círculos acadêmicos, posto que muitos brasileiros insistem no desejo de identificarem-se com os habitantes de Miami city.
Meu contato com Galeano se deu, como para muitas pessoas, através da obra que citei acima. Essa que, por sua vez, constitui-se num manual sócio-histórico-politico-antropológico e cultural do povo latino americano de suma relevância para quem deseja entender, de fato, porque a realidade da América Latina desenhou-se tal como a conhecemos contemporaneamente.
Certo dia, “mirando el mar”, em mais um daqueles veraneios familiares, em 2012, juntamente com aquele que considero meu melhor amigo e companheiro, o qual compartilhamos segredos e algumas cifras musicais, decidimos fazer uma viagem para o Uruguai e para a Argentina, por aproximadamente 20 dias. Foi aí que me fiz a seguinte pergunta: que livro poderia levar para me acompanhar em uma viagem como esta? Era uma mochila pequena, dessas que levamos para escola. Nela cabiam quatro cuecas, duas bermudas, um blusão fino, quatro pares de meia, uma toalha, uma escova de dente e um desodorante pequeno. De fato, nossa viagem era de austeridade. Sem muitos gastos e sem muita ostentação na bagagem. Mas eu teria que encontrar um espaço para o tal livro. Mas que livro eu levaria, pensei novamente? Eis que me indaguei: se vou conhecer dois Países da América do Sul, porque não carregar comigo o Galeano na mochila? Talvez ali, enrolado nas bermudas, ele ficaria bem protegido do sol e da umidade, sendo que ele já tinha seus 71 anos.
Foi então que levei comigo “As veias abertas da América Latina”. A cada lugar que parávamos, folhava algumas páginas, lia trechos que me chamavam a atenção e assim fui conhecendo um pouco da realidade do povo latino-americano. Galeano era simétrico e didático. Sem pudores acadêmicos, descortinava as verdades econômicas, sociais e políticas mais dolorosas que têm assombrado a integração da América Latina. Galeano, nesta obra, não poupou adjetivações ao imperialismo norte-americano, tampouco à especulação (exploração e expropriação) do capital internacional em terras latinas.
Confesso, pela primeira vez, que, ao ficar dez dias no Uruguai, sendo sete em Montevidéu, sempre esperei topar com Galeano em algum café na “Ciudad Vieja”, ou no pôr-do-sol da Rambla. Não realizei esta façanha, mas voltei com a bagagem mais cheia. Cheia de cultura, cheia de utopias, cheia de esperança, cheio de abraços, cheio de espelhos, enfim, cheia de Eduardo, cheia de Galeano.