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jauretche portugues

Livros e alpargatas

prólogo de Charco

 

Arturo Jauretche (1901-1974) afiou a sua caneta no calor das atividades práticas que os acontecimentos da política demandavam. Apoiou os anos finais do governo de Hipólito Yrigoyen, da União Cívica Radical, considerado por Jauretche uma criação autêntica do povo. Quando este foi derrocado em 1930, fez parte do grupo dos “intransigentes” seguidores de Yrigoyen, participando da insurreição de 1933 como um soldado mais a empunhar armas “pela soberania popular que é a liberdade da Pátria”. O fracasso da revolta rendeu-lhe quatro meses na prisão, onde pôde escrever e estreitar laços com os companheiros junto aos quais formaria dois anos mais tarde o grupo FORJA (Força de Orientação Radical da Jovem Argentina).

Os jovens radicais seguiram as últimas palavras de Yrigoyen - “há que começar de novo” - e se esforçaram para contribuir com soluções concretas aos problemas concretos dos argentinos, o que significou desvelar a estrutura da dependência da Inglaterra e combater a década infame a partir de inúmeráveis conferências e publicações.

A chegada de Perón ao poder representou a dissolução do FORJA, porque seus integrantes consideraram que esse fenômeno acabava por cumprir as finalidades perseguidas na criação do grupo. Jauretche passou a colaborar efetivamente com o peronismo na Secretaria de Trabalho e Previsão e no Banco da Província de Buenos Aires.

Foi, assim, um nexo entre esses dois movimentos de massa conduzidos por Yrigoyen e Perón. Reside aí grande parte da sua importância como homem que transcendeu a tradicional divisão radicais X peronistas, aproximando os setores mais progressistas de ambos signos políticos e estabelecendo antecedente para a formação de uma base ampla com vistas à impulsão de um projeto nacional e popular.

Denunciou, enquanto teórico, o falseamento da história com fins anti-nacionais praticado pela “intelligentzia” que negava a ordem natural das coisas: pão, teto, roupa e depois alfabeto, ou ainda, trabalho e depois educação. Por defender a primazia do real, das necessidades básicas, Jauretche reivindicou a linha histórica Rosas-Yrigoyen-Perón, a lança, o voto e o sindicato; diante de dilemas e falsos dilemas, escolheu ser livros e alpargatas.    

cipaio

colaboração de: Catalina Correa (Córdoba, Argentina)

 

Cipaio*, ou cipaia é para mim uma das piores ofensas. Se me dizem cipaio, me sinto mal, me sinto insultada de verdade. Não me incomodaria que me digam louca (não me sentiria incômoda com isso), tampouco me ofenderia que me digam bruta ( se isso significa inculta ou néscia), nem ligaria se me chamassem de puta (se com isso pretendem denegrir meu voluminoso desejo. Mas se me dizem cipaio me sinto realmente questionada. Ser cipaio é muitíssimo pior que ser colonizado porque ser cipaio é ser funcional à colonização. Se bem o termo opera historicamente desde a época em que uns nativos de alguma colônia eram funcionais aos interesses metropolitanos de algum império poderoso, Arturo Jauretche o tomou para falar do que passava aquí na Argentina com respeito à colonização já não só econômica, nem política, senão também cultural. Mas Jauretche o usou há cem anos, ou menos, não sei. A coisa é que ainda hoje a palabra cipaio insulta, ofende, ou seja que ainda fala, ou seja que se atualiza no contexto de hoje e nos serve. Nos serve não só para maldizer-nos, também para pensar por exemplo que cultura contruímos, ou pretendemos construir, o que dizemos quando dizemos “que cultx é estx senhxr”, o que defendemos e legitimamos como cultura e o que deixamos fora. E fundamentalmente por que funciona dessa maneira.

Quando Jauretche falou (evidentemente hoje nos segue falando) dos problemas da realidade nacional, disse que estes se fundam sobre a base de uma cultura que nos foi inculcada sempre em favor de interesses e ideias estrangeiras. Quando advertiu isso, também disse que ao herdar a cultura, a herdamos sem adequá-la a nossa própria realidade e fomos incapazes de criar um ponto de vista próprio. Nisso Jauretche confere a responsabilidade à intelectualidade argentina, a qual acusa fortemente por sua atitude de dependência e por sua incapacidade para ver em função da realidade, a realidade própria, a realidade do cara que vive aqui e se topa com as coisas que passam aquí. Isto é, em termos jauretcheanos, aquela realidade que foi historicamente ignorada para postular uma suposta realidade que surge dos livros que escreve a classe intelectual, cuja ilustração é “ignorância do próprio e sabedoria do alheio”.

Em 1968 Arturo Jauretche escreve o Manual das sonseiras argentinas, no qual define como a primeira e mãe de todas as sonseiras o axioma civilização-barbárie e dirá ao respeito que todo fato próprio (isto é, que surge nessa terra) por sê-lo, era bárbaro e todo fato alheio, importado, por sê-lo, era civilizado. Em termos de Jauretche, civilizar, pois, consistiu em desnacionalizar.

Desde o Facundo de Sarmiento, o binômio civilização-barbárie opera ao longo de toda a história cultural argentina, conectando os elementos de desordem por um lado e os de ordem e progresso pelo outro. Pelo qual, a “biografia imoral” que Sarmiento faz sobre Facundo Quiroga funciona mostrando pedagogicamente não só o que é ser bárbaro e o que é ser civilizado, senão também identificando qual é o exemplo e o contra-exemplo, qual é o inimigo da Pátria e dos valores que a Pátria impõe. Tal manobra discursiva estende-se ao longo da história nacional impedindo reivindicar e avaliar positivamente o próprio frente ao estrangeiro. Jauretche colocará que a sonseira civilização e bárbarie não nos permite pensar, nem refletir, senão que simplesmente aplicamos e, pior ainda, pensamos e falamos desde aí, sem deter-nos em uma análise.

O importante, eu acho, é poder visualizar que não só a colonização política e econômica nos desfavorece, também a colonização cultural nos põe em um lugar de desautorização, como se não tivéssemos sido capazes de pensar e produzir cultura, como si A cultura estivesse em outra parte que nunca é aquii. Neste sentido, Jauretche diz que os movimentos populares configuram a expressão mais viva e própria de uma nação, por isso também crê urgente reivindicar o popular e poder avaliá-lo positivamente. Analisar a realidade e a história se apresenta como uma exigência. Será necessário descobrir o fio condutordos acontecimentos para poder compreender uma política que historicamente foi direcionada à dependência absoluta. O problema está aí. Na falta de ferramentas epistemológicas próprias. O problema está em que para uma grandíssima parte da intelectualidade e daqueles que configuram os modos e maneiras de pensar e dizer, o drama do próprio povo não mereceu maior importância ou, em todo caso, quando referiu-se a ele fez-se desde um lugar estranho, estrangeiro, de imcompreensão, desde categorias que não são capazes de falar das nossas realidades, sentidos e sentires. O problema está nos operadores colonizados-colonizadores-colonizantes que como funcionários da cultura autorizada, repetem e reproduzem através do aparelho pedagógico aquilo do civilizado e o bárbaro, que nos impõe como uma verdade inquestionável obrigando-nos a optar, a tomar partido, a ser bárbaro ou civilizado. Para Arturo Jauretche a intelectualidade deveria levar ao plano da inteligência política o modo comum de ver as coisas pelos homens do povo, ou seja, centralizar a perspectiva desde nós, para ver o mundo desde nosso próprio ângulo e compreender nosso papel. Habituar-nos à capacidade original e criativa de ver o mundo desde nós, por nós e para nós.

Eu acho que por isso do colonialismo, nestas cidades que se acham progressistas, nos cruzamos com gente que viaja ser gringo com estilo e reconhecimento e se comportam como europeus cool e com “bom gosto”, ao mesmo tempo que nos dá vergonha que se note em nós a “negrada”, a “indiada” americana. Essa atitude, a de querer ser como o outro mas aqui, nos cai como um gesto falso, como um disfarce mal feito e mal pensado. No entanto e por sorte, podemos questionar-nos, pensar-nos e autocriticar-nos (talvez nessa prática encontra-se o mais autêntico daquilo que constitui o pensamento latino-americano). Por isso, não sei se o disfarce de estrangeiro será tão perigoso, já que nos habilita a refletir sobre o que realmente somos. O que sim me parece preocupante é não advertir quando ocupamos a posição do cipaio acreditando que dessa maneira “melhoramos”, “progredimos”, “avançamos”, “evoluímos”. Acho que aí está o risco maior, em exercer a “cipaiês” amarga e genuinamente porque nos confundiram desde o princípio, nos mal-educaram e em geral não somos capazes de vê-lo, dizê-lo, nem tentar contrapô-lo.

 

*Cipaio- termo originalmente atribuído aos soldados hindus a serviço do Império Britânico. Com o tempo, passou a ser utilizado para designar todo aquele que atua contra o próprio país em favor de interesses estrangeiros.

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